terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ciclo Pornográfico

Todos os dias vemos pornografia na televisão. Anjos cadentes que salvam criancinhas da morte, caridade com os doentinhos, verdades noticiosas nunca suspeitadas, verdades tão verdade que são mentiras, acidentes de viação, choros em horário nobre; todo um arsenal pornográfico alimenta o imaginário de uma sociedade que não gosta de chamar as coisas pelos seus nomes. O século XXI poderá muito bem ser o século da pornografia, em que o confronto com a verdade (o que quer que isso seja) será uma obsessão animal. Talvez estes textos venham a trazer alguma luz ao que deve ser o verdadeiro significado do termo.

I - Job

Escolheste mal, Job,
O teu caminho,
porque a tua pobreza ostensiva
abusa da vaidade;

Em vez de te persignares
ao primeiro profeta que
te entre pela soleira,
porque não cantas tu os ricos, Job?

Dizem os saxónios
que a riqueza é um graça divina, Job
E porventura quererás contrariar
quem tem tais amigos?

Pobre Job, escolhe outra luta,
essa só a ti aproveita
e nem sequer dela t'alimentas.

II - A Medusa

Quando à noite te sentares
na tua cadeira de vime,
lembra-te, Medusa, que
ainda tens muito para
conquistar;

Saberás, porventura,
que a maior felicidade
jaz nos bens do mundo;
Poderia alguém censurar-te
se te mataram o Deus tão cedo?

Mais ai, pobre de ti, se te recusas,
se colhes apenas o que é fugaz
(ainda mais fugaz),
porque de corpo, além
das humanas secreções
colherás só o cinismo;

E é pena assim, é pena...

III - O tirano

Se o vento e o tempo
ainda têm lições para da,
a mais pusilânime será
que no amor não existe democracia;

Em modos liberais nos afoitamos
ao corpo desejado de Deméter
qual ladrão ocasional
encontra a janela aberta;

Cedo nos apegamos
às benesses do amor
e daquilo que tínhamos por empréstimo
nos queremos tornar donos e senhores,

O corpo tão desejado
o vemos, como uma extensão
do nosso próprio corpo,

E mais faríamos,
se porventura lêssemos os pensamentos.

IV- A Caçada

E por mais que a besta grite,
os seus lamentos continuarão surdos
nas paredes inertes do tempo;

Lembra-te, sonhador,
quantos génios como tu
(e cedo ceifados à vida)
a humanidade produziu?
E de quantos nada resta?

A besta grita porque grita.
Os seus gritos serão
(como sempre)
surdos, aos olhos do tempo.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cristal

Aquela moça bela,
Sim, aquela e não outra,
Aquela insegura e delicada,
mexe os lábios com tal devoção,

Parece que me canta uma canção

Aquela moça, discreta e delicada,
Caminha pela rua a passo incerto,
Olha prá minha vida atarantada
como se visse a morte

Ai moça, discreta e insegura,
Se este cortiço castigado e duro,
pudesse arcar por ti a desventura...
Que bela sorte seria, e tanto mais feliz.

Se ao menos entregasses um momento,
Ou eu por ti nesse Calvário
Farias do meu braço o teu escudo,
E eu do teu corpo um santuário,

Onde todas as noites rezarei
Para esquecer o que jamais serei.

Prendam o monstro!

Prendam o monstro
antes que se consuma,
Qual fogo-fátuo-auto-inflingido,

Prendam o monstro que ele se comove,
Cheio de comédias e farsantes,
Vistam-no de rubis e diamantes
E vejam como a própria língua engole!

Parem-no, que ainda se mata,
Pois dá-lhe pr'a viver onde se acaba,
O monstro está de casa aperaltada
Entra pela saída, sai pela entrada!

Matem-no, antes que vos coma,
Tal é a raiva que enerva o seu ventre,
Alimenta-se a pantufas e inocentes,
Qu'inda lhe sai o tiro pl'a culatra.

Metam-no a urinóis e naftalina
Em direcção à terra prometida
E em vez de morte saír-lhe-á vida
Na estepe infinita, onde o prazer se (é) taiga,

Lembrem-no que se leva ilusões,
Aí encontrará e com fartura,
Planícies desertas de verdura
Pedaços d'oxigénio aos montalhões!

O horrendo corpo que tão mal se aguenta
Nas curvas do desejo encontrará,
Em banhos de água pútrida lamenta,
A história, que por certo voltará.

Tragam-no ao porão bem amarrado,
Metam-no a cantigas curriqueiras,
Que a fama o tem fá por afortunado!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Canto às Urtigas

A José Saramago,


Há algo no mar, que ao longo se avizinha,
Uma sombra, corsário, Adamastor,

Pudera uma canção,
Um simples canto, um reflexo,
Uma prece oca, uma ilusão,
Uma triste história pachorrenta
Uma mentira, cançoneta em falsete
Despertar a nossa vida;

Pudera que assim hoje,
Tudo tão leve, nos leve ao fundo,
Nos faça amar o irreal
Na Babilónia de papel
Qu nos esmaga como chumbo;

Pudera que uma vez,
Qual ténue abrigo em alto mar
Nos traga de novo a nós
O mundo perdido ou nunca achado
A procura?

sábado, 2 de outubro de 2010

Adeus!

Ainda ontem vira
mais uma cidade erguida do alto,
montanhas de aço e vidro
prostradas ao céu.

Mais uma cidade, caída aos meus pés,
Ah! Janeiro, Fevereiro, Outubro e Dezembro,
Visitara-vos como se estivésseis já acabados,
Qual Muralha de Constantinopla feita em fanicos pelos turcos,
Ah, vida, civilização, eterno adeus, eterno recomeço,

Adeus ao homens chegados a casa cansados!
Adeus às mulheres, renitentes no sexo depois de uma ida ao cabeleireiro
(e por vezes aborrecidas no meio da violência)!
Adeus às armas, coroa de louros de heróis longínquos!
Adeus Guerra Clássica!
Adeus Soldado Desconhecido!
Adeus namoricos de janela, tantas vezes defraudados
e aniquilados pelo sol de todos os dias (porque não vos refugiasteis
então na lua - o sol dos lobos?)!
Adeus inflações e deflações!
Adeus crianças à beira do abismo!
Adeus poetas sedentos de abismo!
Adeus à velha guarda e aos seus sábios conselhos!
Adeus histórias por contar (porque vos garanto, doravante
nenhuma história ficará por contar e nenhum nobre génio por reconhecer)!
Adeus à pátria, e que alegrias e tristezas inspiraste no coração dos poetas!
Fique esta porta bem selada, não vá alguém se lembrar de entrar!
Adeus! Para sempre! Adeus!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

No Cais do Sodré

A janela aberta
Para o Cais do Sodré
Mostrou vanidade
Nos esforços humanos

Homens tão jovens
Desmasculinizados,
Vasos de Guerra
Inutilizados,

Pernas e braços,
Cabeças sem par,
Troncos desmembrados
Lançados pl’o ar

Mas mais do que tudo,
Um lindo estendal,
Roupa remexida
Pl’o vendaval

Num suave tormento
Calças por pernas
Inchadas pl’o vento

Correntes circulares
Vazando a maré
Foi tudo o que vi
No Cais do Sodré.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Osíris precisa de sangue

Osíris precisa de sangue,
Desta vez de qualquer um,
Tal a sede que o atormenta.

Osíris precisa de sangue,
De promessas e esperanças,
histórias de vida por contar,
Páginas por escrever .

Osíris, de espírito animal,
Precia de sangue humano,
Nada de inusual,

À hora do discurso
Surge bem aperaltado
Dar-se-á por satisfeito
Quando estiver saciado,

Por entre os cortesãos
Com saber improvisado,
Dará por eterno o presente,
Futuro eterno inacabado.

Osíris quer sangue e vida
Comer e encher a pança
Dar-lhe-emos o que quer
Antes que coma a esperança.

sábado, 26 de junho de 2010

Vê linda como partem os comboios,
Vê que com absortos ocupantes,
Talvez a esperança lhes traga silêncio,
Vê a paisagem que muda
E que também nós mudamos,
Só o silêncio em mim não colhe
Nem as flores que plantei em tuas mãos florescem
Pois seja... Basta tolhê-las da terra e já não crescem,
E também já não semeio margaridas
Porque apenas colho cravos e rosas.
Não fites mais os trilhos linda,
Nem os comboios que passam,
São apenas sombras, os que os ocupam,
E nós apenas espectros desconhecidos.

sábado, 12 de junho de 2010

Expressão

A um olhar atento e gélido
respondo-te com um sorriso,
Poderia ser de outra forma
Para nós comediantes?

Um abraço que afaga e que bate,
Uma boca que beija e que insulta
correndo pelos cantos a um torso
não bronzeado
Perdendo-se num jogo de espaldas
finamente torneado,

Para ti natureza viva minha
de tantos de tantos e tontos
que te servem para quê?
Para que sacrificas a um Deus
desconhecido quando o Deus da
tua nascença é mais ancestral...
Para quê? Só tu bastarias
sem a nossa natureza
masculina e opressora
impostora quantas vezes
colocar-te-ia eu ou
um outro qualquer um
véu de noiva moribunda
ou uma casa com jardim
ou um passeio de domingo
à tarde ou sabe-se lá mais
o quê ou nada
Tu uma possibilidade de vida
entre tantas outras
um dia recordarás estes momentos
de doce loucura como isso: loucura,
Dirás que isso é loucura e que
a loucura é má
E pedirás perdão tantas vezes
por aquilo que foste e tentarás
aniquilar todo o resto de ti
que ainda se alimenta desse passado
agora obscuro
E então o teu olhar gélido e apaixonado
tornar-se-á vago e pequenino
como a canseira dos dias.

domingo, 23 de maio de 2010

Pega no teu livro, Amalfitano

A Roberto Bolaño,

Pega no teu livro e expõe-no ao vento,
Ao sol, à chuva, a todos os tormentos,
Pendura-o pela capa resistente,
A ver o que nele fazem os elementos;

Pendura o teu livro no deserto,
Vê como é robusto e resistente,
E ainda que, matéria indiferente
Se alça num invisível protesto;

Do que fala o teu livro, Amalfitano?
Fala de geometria ou de demência?
De sofrimento, morte ou inocência,
Ou de vida, tão só vida?

O polígono, a secura de um polígono,
O círculo, o quadrado, o triângulo,
O hexágono, o pentágono, o losango

Verdade+Verdade


Vida

Impossibilidade

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Dia 25 de Abril, A Álvaro Cunhal

Ah! Manhã!
Apeteces-me à uma
só e una,
Sob o sol primaveril
Que traz a esperança,
A quem tem pouco traz pouco,
A quem de muito bonança,
Manhã de Abril!
De infaustos gaiatos
que brincam na rua,
Minh'alma é só tua,
Portentoso Abril,
Abrupta memória
Inexistente
Do soar fantástico
E hinos de glória,
Agora és de plástico,
Plástico? Nem plástico,
Só absurdo,
Como sempre na história
Te disfarçaste
Como sempre na história
Nos desenganaste
Ao nosso triste fado,
Como sempre na história
O operário respira
O ar envenenado,
Ah! Abril, eterna tristeza,
Eterno naufrágio,
Que já quando era nado
Eras já, Abril corrompido,
Prostituído,
E há quem te encontre um
tom de estío?
Nada, Nada,
De nada servem mais canções,
Preces e ilusões
Mas coragem, só coragem,
Coragem de perder!
Respeito!
Força Abril!
O da memória inexistente...

Dia 24 de Abril, a Salgueiro Maia

Ainda que louco,
mais ingrata é a sorte
que me deixa só,
sem dor nem alegria
nem morte por companhia
mas só,
Mas é cousa de pouca monta,
Pois nestas andanças de estar vivo,
Só coragem e bravura pouco conta
Só?

Dia 23 de Abril, A Rosa Casaco

Doce calma, ar, puro, seco,
Lisboa da minha vida,
O resto? Aranha corcomida
Voando tresloucada pelo tecto.

Lisboa das mil varandas a arejar,
Quem te vira assim desprevenido
Diria que o teu indolente rio
É assim tal como uma espécie de mar.

Lisboa do largo tejo sempre igual,
O mesmo mar que vira outras andanças,
De potestades vãs e vãs esperanças,
Escondido pelas ruas ruge o mal.

Foi-te assim concedido o suave clima
Que abranda às almas os loucos intentos
E a luz abunda e abafa os lamentos
A um monótono amanhecer,

Sempre incrível!
Lisboa possível!
Paraíso...
Paraíso possível...

Dia 22 de Abril, a Soares

Mas que merda de país tu me
saíste, na verdade,
Que só quando se ergue a
voz aos anjos,
Eles nos concedem paz, pão,
povo, liberdade!
E a Guerra--- só a conheço
como tal: Guerra!
De quem da minha vida
me fugiste?
Merda de país que me
pariste!

Dia 21 de Abril, a Cerejeira

Deus é só um,
Mas a vida tão varável,
Mas tão lógica e imutável,
que parece o tempo uno
só por si...
Lógica, Deus... por quem
me obrigas?
Que importa tanto arfar e
inquietação?
Que interessa tanta dor, se
Deus fez tudo?
Calmo... assim é Deus.
Calmo, silencioso, lógico.

Dia 20 de Abril, a Humberto Delgado

Quem ousa amar
e dizer que ganha?
Quem ousa mover-se
no pântano e cantar vitória?
A morte é um lugar
estranho, sempre foi,
e a vida permanente
inquietação...
Só tudo vai passando
e só vejo luz e
barulho - - - agitemo-los
ainda mais , e que
o fogo incendiado em
cada esquina seja meu!
Depois, loucos, extravagantes,
Viveremos para sempre...
Quem ousa?

Dia 19 de Abril, a António Ferro

Sonho? Sonho é nada!
Vida é lutar e acreditar,
O resto? Ideias? Nada!
Só uma ordem...só e expressa
A vontade de um líder escohido,
O resto é caos e abismo,
O desnorte tão perigoso,
Só o heroísmo,
O tudo e o nada,
A pátria amada cujo sol
ilumina
O respeito precioso,
a ordem humana,
só, e um líder,
O resto é nada!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Gaivotas sanguinárias

Dissera avaro um dia assim,
que a estupidez humana é
inexorável
E a bondade, esse monstro
de mãos largas
Sorria-me
como quem dá,
como quem tira,
como quem sofre.
Exclamou-se que a loucura
é contagiosa,
e não tardarei em surpreender
os vizinhos com olhos esgazeados,
como quem dá,
como quem tira,
como quem sofre,
E as ideias, essas..., valem de pouco,
e o homem vale pouco,
e a carne de pouco vale,
Talvez por isso a gaivota
a trazia suspendida no bico,
como quem dá,
como quem tira,
como quem sofre,
E as gaivotas suas amigas,
essas de penas brancas
como um peluche,
cobiçam-lhe a carne pouco valiosa,
como quem dá,
como quem tira,
como quem sofre,
Enquanto a carne solitária
estrebuchava, sozinha e
estrebuchando, pensavam as
gaivotas: se todas trazemos a
nossa carne no bico,
[e] quem dá?
[e] quem tira?
[e] quem sofre?

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Corria o ano de sessenta e cinco,
Nem Deus ainda existia,
Ou se existia, não sabia
Que o viria a ser um dia.

O bom pastor olhou o seu rebanho
E viu suas ovelhas bem malhadas,
Momento após momento atordoadas,

Co'a estranha imensidão do universo,

Comiam erva sem saber o que a compunha,
Glícidos, lípidos, triglicérides,
Corriam preocupadas a herdade
Cientes da bestial animalidade,

Mas eis que o bom pastor intercedia,
Corai ovelhas todas de vergonha,
Pois não sabeis que é vossa só a culpa
De o Ser,
Condição medonha...

domingo, 28 de março de 2010

Órfãos do tempo

Esses Sans-Coulottes esfomeados
Que hoje assaltam os celeiros do Faraó,
Vejo-os no tempo,
Temporalidades fora do tempo,

Não nada e são tudo,
Massa invisível,
Cambaleantes do progresso,
Arroto da civilização...

segunda-feira, 22 de março de 2010

Madeixas Loiras

Porque fizeste essas madeixas loiras querida?
Porquê?
Porque te sentes bem assim?
Porque os homens preferem as loiras?
Porquê?
Não te esqueças que Deus é Deus,
E que ofendê-lo é pecado...
E Deus, a uns fê-los brancos,
de olhos azuis, outros loiros,
negros, amarelos... até franceses,
vê lá tu!...
A mim, esbarrou-me
com este nariz judeu estúpido
que tenho;
A ti fez-te com uma linda
cara oval adornada com
lindos cabelos castanhos
finos que nos momentos
mais felizes caem abandonados
na tua testa.
Colocou-te também dois lindos
olhitos em forma de amêndoa
que tantas vezes vejo eivados
de desespero, ou semi-cerrados
porque estas cansada
de trabalhar ou felizes
porque acabaste de saber uma
boa-nova picante na revista.
Impôs-te duas mãos demasiado
largas que bem poderiam
ser de um rapazito adolescente.
A mim mãos compridas com
dedos delgados que bem
poderiam ser de obstetra.
Não cheiras a Chanel... Mas
a alho quando cortas alho,
hálito de cebola quando comes cebola
e... obviamente
tal como todos os outros mortais,
o ácido sulfénico faz-te chorar.

Agora diz-me querida,
Se Deus colocou em ti tanta beleza,
Porque gastaste os últimos tostões nessas madeixas loiras?

sábado, 20 de março de 2010

Se olho o universo escuro e frio
Não vejo aí nenhuma dignidade,
Nem réstia de destino ou liberdade
Nem compaixão pela morte ou desvario;

Quem vive vai sorrindo ao breve estio
Em busca d'harmonia e humanidade
Resgatando o são amor à crueldade
pousando os pés assaz no mesmo rio,

E é já música antiga o que se esvai
E loucos correm os homens p'la certeza
Na pista do acaso, de onde sai

Encoberta violência , aspereza,
Cegueira, insensatez... Encarcerai!
Tornai-vos, merda, a mais fina nobreza!

quarta-feira, 10 de março de 2010

Ei-los, os bárbaros

Ei-los, os bárbaros,
Chegam hoje a Roma
Onde confortavelmente
Se instalam.

Ei-los, os bárbaros
Prestam tributo
Ao Deus cristão
Fizeram suas preces.

Ei-los, os bárbaros,
Conspurcam o templo
Violam as vestais
Destroem o altar.

Ei-los, os bárbaros,
Mancharam de sangue
Colunas coríntias
Manchadas de sangue.

Segue-se agora a noite,
A noite dos tempos
Uma noite bárbara
Para almas bárbaras.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Lembrança

Lembro-me de tudo, querida,
Lembro-me de como aqueles
dias chuvosos na nossa cidade
maldita se tornavam
agradavelmente solarengos.
Lembro-me daquele dialecto
Estranho que falávamos e
Com o qual nos entendíamos
Como se crescêramos no mesmo
Berço.
Lembro-me de como uma
noite rodopiaste em torno
de mim como uma bailarina,
E como eu cerrava os lábios atónito,
E tu rodopiavas como o sol
Em torno da terra antes
De Copérnico.
Lembro-me de como te afagava os
Gritos com a minha boca.
Lembro-me como encostava
O meu tórax nas tuas costas
E assim os nossos diafragmas
Bailavam juntos.
Lembro-me como limpava
A última gota de gelado que
Deixavas no canto da boca
Com um beijo.
Lembro-me de como um
dia dizias que tudo era
de uma realidade tão irreal
que cortava a respiração... e
que o teu ser físico abandonaria
a cidade.
Depois... Depois era o silêncio,
E as ruas que se me compunham
nos olhos como uma teia, e
que tudo que me entrava
nos olhos feria, e a realidade
só fazia sentido contigo,
o ser mais irreal.
Lembro-me de como um dia
Deixei o meu nome escrito numa
Parede, onde antes existia também
O teu, e que um dia ficou apenas
o meu com as sua odiosas
sílabas.
Mas sabes, querida, se te serve
De consolo, talvez o tempo apague
Também o meu nome dessa
Parede, restando apenas eu,
Tu, e a cidade maldita...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Só há mar no meu país

Só há mar no meu pais,
Estendido e colossal,
Pois só assim se vê
O reflexo
Das almas dos seus filhos;

Só há mar no meu pais,
E correntes e marés,
E corpos que vagueiam,
E corpos que flutuam
Em estepes infinitas;

Há mar só no meu pais
Que inunda a massa amorfa,
Leve, monótono, enfermiço,
Arrastado e infeliz;

Mas se apenas em mar se fez história
...

Cesse!

Tenho fome,
Fome e sede de justiça,
Vontade e não saudade
De ir, perecer e sonhar;
Sede, não de água salgada
Mas de vinho envenenado;
Fome, não de troços e couves
Mas de ambrósia divina;

Sede e fome de história
Ou do frio sepulcral,

Sede e fome de glória
Ou desgraça colossal

Mas nem a desgraças te prestas
...
Pequeno Portugal

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Retrato

Observo o teu perfil e o teu andar
Teu globo azul que cobre a retina
O teu corpo feito de água e albumina
Com massa adiposa a resguardar,

As veias que se perdem a irrigar
Qual mapa infinito de uma mina
Ruborescem tuas faces de menina
Reflexo sensorial ao meu olhar,

E a forma retraída neste instante,
Desenha tua boca em esplendor
Como se recusaras, qual farsante,

Que oferece logo tudo sem rancor.
Mas sabes, filha, cago no amor,
E em todos os despojos de amante.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Deriva

Visto o casaco puído do tempo,
Clochard autorizado,
Rugas não tão ansiadas
Cravam-me a testa,
Cicatrizes de combate.

As calças apertadas atolam-me
a natureza;
Os sapatos preparados
Para uma boa refeição.

Em vão tudo desfila diante dos meus olhos:
Máscaras de cores garridas,
Anões e bobos de corte,
Carpideiras contratadas,
Cuspidores de fogo
transportados em traineiras;

Tudo tão irreal
À realidade tão palpável
do meu estômago colado às costas.

Marujos mareados a mil marés
Convidam ao embarque a terra nova
O capitão está louco,
O mapa a estibordo,
A carga no mar flutua…

Chega-se a hora de jantar,
Não chega que tenhas bom estômago
mas também bons dentes,
Pois o pão da emente de hoje é duro;

E que tenhas coragem,
Pois também é bolorento,
E audácia,
Pois terás de o roubar,
E força,
Pois terás de correr com ele.

Já não se preocupam com o que não te dão,
Deves antes preocupar-te com o que ainda te podem tirar;

O capitão está louco,
O barco à deriva,
A carga a estibordo.

Visto-me de nudez vestido
Louco sedento,
Aterroriza-me o descanso.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Diapasão - II

Na negrura alva de um tição
Vi que tudo em tudo assenta em nada
Que o mais belo corpo assenta em água
Não existe esperança ou salvação;

Se o que vemos é real ou ficção
Em que credo ou altar sacrificar
Se ao Deus Maior ou ao Deus do Lar
Quando a vida nos aporta confusão;

E são tudo fluxos, fluxos incessantes
Aflorando em várias margens o eterno rio
Sem saber se é bom ou mau, quente ou frio
Apenas que vivemos, morremos, tal como antes.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Sonho

Um cortejo bizarro que passa
O passado entre sombras tenebroso
Um charco de sangue que alastra
A uma cova qualquer onde se afunda

As pedras que ocultam indiferentes
A imagem daqueles que contemplam
Os náufragos que adornam as correntes
Dos tempos que em verdade nunca mudam

Só força, de onde vem toda essa força
Que faz aguentar o peso insustentável
Da memória?