segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Diapasão

Enquanto tudo arde lá fora
Atenho-me ao meu quintal
Realidade perceptível,

Nada exijam mais de mim
Nem as grandes prelecções do ocidente
Nem o terrorismo islamita
Nem a complexidade dos sistemas autopoiéticos e auto-referenciais,

Limitem-me ao meu quintal
Alimentar os meus coelhos
Alimentar as minhas galinhas
Passear os meus cachorros

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Se vês que a salvação está no teu corpo,
Aí só vejo morte e desperdício
Sem desprezar da vida o alegre vício
De crer que o ver é o seu mais nobre sopro

Mas crer no ter é cair no amorfo
Espaço de ilusão cujo resquício
As mãos levam em último suplício
No púrpura fatal do inerte corpo

E tu que já em plena luz do dia
Clamavas por um verso mais contente
Saberás que o tempo é pura fantasia

Saltando pardacento o meio-dia
Caindo em versos ternos inocentes
Eterna triste e doce companhia

sábado, 21 de novembro de 2009

Não a ti mas a uma sombra apenas vejo
Essa sombra que ainda tanto me atormenta
Que torna vã a vida tão violenta
O espectáculo de horrores passa em cortejo

Corpos corpos sem nome eu só desejo
Nomes nomes sem corpo o ser sustenta
Ao som de aras pútridas aguenta
Apenas o teu nome e o teu beijo

Mas ó mulher a vida é aparência
E o dia que promete é só fugaz
E o amor uma espécie de indecência

Que fulge distraído essa demência
De ser vilão e herói e ser capaz
Ou mísero pedinte da inclemência

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Flor

Chuva, como quem caia em memória,
Flor, se pensar que eras flor,
Se apenas um momento de vitória,
Foras minha e não o contrário de quem espera
Flor desavinda…

Chão, faltara apenas o chão,
Quando construía, construía a quimera
Desejara Babeis e Gomorras sobre a terra
Quando tudo inexorável ruía,

Mas flor e chão e chuva e sol
Só por ti foras sol e flor e chuva
Foras, simplesmente,
Não fosse a noite tão escura.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Perversos céus opacos
Sempre nós assim
Fugimos de rios e pontes
Sempre nós inocentes objectivos

Sem Deus nem lei nem pátria
Só a eterna sobrevivência
Coloca cabeças ao alto
E espalha nos corações alegria

Quisera eu sempre bocejar
A sombra da minha virtude animal
Mas a dúvida atroz vai vencendo
Já nem nada chego a ser

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Sozinhos e perdidos
Presos a um chão gelado
Assim nos quer o tempo

Soltos como quem pena
Penitentes como quem ri

Mas é já tempo e a aurora
E algo nasce já grande
Como nunca fora criança

Sorri homem
Deserto moribundo
Como em tempos de calma
Se sente o sangue e a merda
Que do mundo exala

Sorri homem e enxerga
A outra vida que nasce
Essa nunca criança
Em hora nova chega

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Celebração

I


Hoje celebro:

A tristeza e a alegria,
A paz e a guerra,
O mar e a terra,
Fulgor e melancolia;

Celebro:

O meu sangue envenenado,
A beleza que passa,
O grotesco e a graça,
O viver enganado;

Celebro o penitente
Com o mesmo enfado
Do engalanado;

Celebro assim,
De forma indiferente,
Na mesma canção
Apenas porque, enfim,
Seja cão ou gente,
Pisa o mesmo chão.

II

Tem tanta razão quem me ama
Como o que me cospe e difama,
Quer me exalte e enobreça
Quer me insulte e esqueça.

III

[taberneiro]

Avaros passamos,
Em cada momento,
Nada que criamos
Dissolve o tormento,

De ter de viver
Amar e sofrer,
Será a nossa sorte
Na vida e na morte,
[todos]

Não há hemisfério
Nem mar nem terra
Que saiba o mistério
Que a vida encerra,

[1ºbêbado]

Ergam bem a taça,
Senhores e senhoras,
Ventura e desgraça,
Boas e más horas;

[2ºbêbado]

Um copo de vinho
Fresquinho a jorrar,
Coroa sozinho
Um Deus no altar;

[prostituta]

Grego ou romano
Vilão ou paisano,
Honesto ou malsão
Pagão ou cristão,

[todos]

Bebam amigos
O néctar da vida
Os sonhos esquecidos
A infância perdida

[taberneiro]

Bebam, que se faça
Ouvir tilintar
O cristal tão frágil
Quase a estilhaçar;

[estudante]

Tudo é tão fútil,
Nem quero pensar
Que aquilo que é útil
É para largar;

[assalariado]
Se a própria existência
Inútil por si,
É pura demência
Para quem não ri;

[recém-chegado]

Por isso eu bebo
Para meu opróbrio
É maior o medo
Para quem está sóbrio

[todos]

Bebam companheiros
Enquanto haverá
Vinho carrascão
Que a vida nos dá;

[poeta]

Triste? Triste é respirar o mesmo ar
E não ver do mundo outra beleza
Que comer, beber, procriar,
Não ver o doce tom da natureza.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

I

Sôfrego, o lar,
Eterno vazio,
A Alma afasta-se
Para onde já não há tempo.

Se será, assim, viver,
Onde já não mora o tempo,
Até onde se verga
A ideia inflexível?

Não! Foge já, mas espera
O tempo
Esparso em parcas memórias

II

Acorda, é luz
E suave a aurora
E o dia promete
Mais do que devia…

III
Só hoje é dia e chorei,
As almas que nunca existiram,
As imensas páginas por escrever,
Os beijos que me recusaram.

IV

Porque foges, se ninguém te segue?
Porque gritas, se ninguém te ouve?
Ainda antes de seres pó,
Antes ainda que as tuas entranhas
entrem em autólise,

Serás pó, quantas vezes…
Quantas vezes deves morrer?

Saberás apenas
Que a verdadeira morte
é essa a que te impões,
De que não gritas,
Passas calado.

Aparte isso,
Nada é diferente
do que seria
se gritasses
à exaustão,

Ninguém sofre
com o que dizes,
Ninguém muda,
porque o queres

Habitua-te a essa condição
Tal como a frase
se habitua à palavra.

REPITO: (mais uma vez):
Se o teu coração está em silêncio,
Deixa-o estar em silêncio,
Sufoca, ainda mais,
O apelo surdo da verdade.

terça-feira, 30 de junho de 2009

A morte que espera na estrada
não é de coisas e gente
não veste de negro
não usa capuz.


Disfarça-se de vida
e é quente o seu corpo

Coroa-nos, reis da nossa visão,
heróis da decadência
acorrentados a um chão gelado,

Dá e tira, beija e cospe
para dizer: “vês? Isto é vida,
agora não percas a esperança”,

Por esta estrada vejo romeiros,
perdidos e vãos como eu,

De resto, nada difere,
por mais que ria ou que sofra,
ou deleite a minha paz

Mesmo que um susto
me salte ao caminho

Qual maldito resistente
Direi: “isto é vida…”

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Olha Marília

Olha Marília,

As giestas decansando
como se fora
resultado de grande labor,

Olha e vê como varia
o mundo que temos,
Esse, tão só,
o dos nosso olhos adentro,

Sente como tudo acontece,
e que nada podemos
que não passear a nossa indiferença...

Enquanto tudo arde---

Vê como nas coisas comezinhas
se esconde o sentido de tudo,
Então compreenderás
o instável sossego que a mesquinha
paz do lar me trazia à alma,

Toca no meu corpo cansado,
Estou velho, não vês?

Mas vem, aproxima-te...
Sente como neste corpo cansado
os meus olhos ainda ardem,

Encosta a cabeça no meu peito,
Respeitemos o silêncio,
Se escutares com atenção
ainda me ouves chorar.


Agora compreendo a paz que sentias
quando ias às festas e romarias.
Como toda aquela calma algazarra
te colocava um véu nos olhos coloridos.
Mas um dia envelhecemos, e de sopro
compreendemos como tudo é tão patético,
desde o primeiro suspiro ao primeiro homem livre.
Caluniar-nos-á o tempo com a sua indiferença
e ferir-nos-á com as suas omissões criminosas.
Entretanto, não penses nem olhes para trás.
Lembra-te do tempo assassino...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A uma cidade

Abril, ao som da chuva incerta,
O vento em suave cadência
Roubou dos corpos a inocência,
Dissolveu a cidade deserta;

Caiu na desgraça mais certa,
Aquela que envolve os amantes,
Transformou vivos em errantes
Por entre essa vida encoberta;

Já nem isso és nem memória,
Do tempo em que viva folgavas
Jazes, coberta em glória,

Dos ilustres que tanto afagavas,
Agora, sufoca-os na história
Da chuva de Abril que esperavas.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Antropofagia

Mate-se o Rei,
Saqueie-se o Templo,
Queimem-se as casas.

Já nada faz sentido,
Nada, sem a Grande Desgraça,
Esperemos por ela
como a noite espera o dia,
Agora, que já ninguém nos pode salvar;

Nada é possível,
Apressemos o fim,

Mas faremos amor,
Trabalhemos,
Construamos as nossas casas
(até com telhados de colmo),
Falemos das nossas políticas,
Gastemos o nosso dinheiro.

Tudo é permitido aos que morreram.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Minas de Ouro

Enquanto o som da fuligem ruge
Furiosa,
Passo calmamente ao seguinte
Momento,
Se sei o que é o sublime
Guardo-o,
Guardo-o só para mim,
Esmagado por séculos e séculos
De avanço científico,
Sei que vivemos de ideias,
Pelas ideias submetemo-nos
às maiores violências,

Será apenas arrogância?

Pensar que obedecemos ao
Sistema,
Nem justo nem injusto,
apenas aquilo que é,

Mas ideia, emoção ou nada,
Como te desprezaria,
Como te desprezaria
Com todo o meu coração
Se apenas por uma vez pusesses
em perigo esta leve sensação
de prazer que agora sinto…

Existe ainda o Amor,
O Amor e a Beleza,
As desilusões,
A sociedade,
A embriaguez,

Mesmo a vós, Amor, Beleza,
Esmagar-vos-ei,
Se alguma vez sentir o estômago vazio,
Dessas sensações que fazem ranger os dentes,

Repito!

Repito que esmurro o primeiro
Idiota que me falar em mudança,
se estiver com fome, é claro !

Assim,

Talvez seja o melhor,
Fixar-mos apenas o olhar no chão
Quando te penetrar de novo,
Tudo se vai compor,
O sol na sua órbita,
Os poetas e as sua metáforas,
E uma breve nostalgia de ser pedra.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Acabemos com as palavras

Acabemos com as palavras,
Finalmente!
Empecilhos,
Queremos a essência
dos rostos,
das acções,
A Beleza e o Amor como eles são;

Inventemos a nossa própria língua,
Não lhe chamaremos língua,
Chamemos-lhe anátema!

Depois faremos um Castelo
apenas com ideias, emoções e suspiros,
sem palavras;

Podemo-nos arvorar de criadores,
Quiçá Deuses?

Sairemos à rua
Como Gulliver em Lilliput;
Seremos gigantes num mundo sem factos;

Acabaremos também com o Tempo,
Faremos musas com as unhas dos pés
e escreveremos apenas com os
nossos corpos.

Então viveremos!

O Espelho

Em todas as épocas,
Daquelas que existiram,
Seria difícil imaginar
A vileza em que vivemos.

Se alguém que existiu,
Noutros tempos, noutras eras,
Vive ainda;

O seu espírito
em tudo o que existe;

Transmutar-se-ia


A sua boca e ouvidos,
Nariz e garganta,
Seriam apenas olhos,
Uns olhos estúpidos e desérticos;

Veria, com olhos estúpidos,
Indiferentes ao seu reflexo,

Tal como o espelho o é,
Seja feio ou belo
o seu objecto.

Esse espelho,
Estúpido,
Passaria diante de nós,
(Porque não dotá-lo também de pernas?)

O Belo e aparente,
Deleitar-se-ia,
Como é belo.

O feio veria apenas
o que é;
feio.

Então esse espelho,
O de olhos vazios,
Ver-se-ia em outro espelho;

O que seria?
Porque não imaginar?


Os seus olhos vazios
transformariam

Vida,
Natureza morta,
Frutos podres;

Em vida;

As pequenas infelicidades de cada um
Em troféus,
Recompensas;

O medo de viver
Ver-se-ia
Então,
Ao espelho.

Homens sem pátria

Lembro-me desses homens sem pátria,

Percorrem montes e vales,

Procuram um lugar
onde refastelar as pernas,
E gozar a luz do sol;


Mas o nevoeiro persiste,

Um dia vislumbram uma nesguita
de sol,

Alguém grita o seu nome,

Esquecem-no amiúde…

domingo, 26 de abril de 2009

Apócalipse

«E, ao anjo da Igreja que está em Laodiceia, escreve: Isto diz o Ámen, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus: Eu sei as tuas obras, que não és frio nem quente; oxalá foras frio ou quente! Assim, porque és morno e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca. Como dizes: Rico sou e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre; e cego, e nu.»

Apocalipse do Apóstolo S. João, 3:14-17 – O Ámen é Cristo

Nem quente, nem frio, mas morno,
Sigo pela vida indiferente,
Maldizem-me a alma doente,
Cativa ao eterno retorno;

Não como, não durmo, não falo,
Não faço da ideia ilusão,
Não remo rumo à perdição,
Não sei se grito ou se calo;

Na vida sigo a caldos frios,
Por entre donzelas e imagens,
Absorto em diferentes paragens,
Já nem sei de choro ou se rio;

Só assim todos caminhamos,
Trouxemos a tudo indiferença,
Pés limpos do chão e doença,
Riqueza e pobreza abraçamos;

Mas não! Não são gritos de glória,
Não! Não são gritos de prazer,
De dor se cobre o nosso ser
Presos à carne e à nossa história;

Vomita-nos do teu enredo,
Vomita, Santo, esta escória
Um dia restará a memória,
Daqueles que o Amor faz segredo.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sepulcros Caiados

Sepulcros caiados
Repousam contentes,
Espasmos calados
Rebentam doentes,

Matizes felizes
Cheios de esperança,
De parcas perdizes
Prometem bonança,

Formas falhadas,
Bocas presunçosas,
Couraças armadas
Rugem raivosas;

Num país bem longe,
Mais longe que o sol,
O barão e o monge
Morderam o anzol,

Pegaram nos feridos,
Cuidaram dos mortos,
Honraram perdidos,
Mimaram os absortos,

Mas já nem dos mortos,
Daqueles que havia,
Sobrava a lembrança,
Bem à luz do dia;

E os feridos tantos,
Que nem os contava,
Só vi os encantos
Daquela que amava;

Também os sepulcros,
Sepulcros caiados,
Viviam estultos
E eram amados.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Nós

Erguemos as bandeiras bem alto,
Gritamos de pulmões cheios,
Falamos todas as línguas,
Conhecemos todas as culturas.

Passamos, estreitos, a ideia do sonho;
Tornámo-la real,
Chora-mos por ela,
Violámo-nos por ela;

Sofremos… quantas vezes sofremos!

Ressuscitamos Deus,
Devolvemos os santos aos altares,
Absorvemos as palavras dos homens
como as dos santos.


Tomámo-los por Deuses,
Enfim, tornámo-nos, nós próprios, Deuses;
Quietos ao seu próprio olhar;


Quantas vezes, mas quantas vezes!

Nós, Deuses, descemos do nosso
Altar e beijámos a primeira moça suja que passava.

Lavámos-lhe a face com as suas próprias lágrimas.

Agora, lavam a nossa própria face com as lágrimas de outros.

Apesar de tudo, não somos loucos!

Não, loucos não somos;

Somos sóbrios… demasiado sóbrios,
Tão sóbrios, que poderiam construir
uma nova Babel sobre as nossas cabeças;

Poder-nos-iam dar a honra
de reis da festa e, mesmo assim,
tomarem-nos por palhaços;

Mas a mudança chove todos os dias
E não encontramos Deus, nem na Cruz
nem nos Céus;

Apenas um sabor amargo,
E um mundo imenso lá fora…

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Esta noite, o dilúvio

Esta noite, o dilúvio
De todas as almas condenadas,
E vidas também naufragadas
Encontram, avaras, o mar;

Que corram, deixá-las correr,
Ávidas de prazer, lascivas,
A terra afaga as esquecidas,
É igual, viver ou morrer.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Escuro, tudo escuro

Escuro, tudo escuro,
De Cnossos labiríntico,
O judeu templo cristão;

A ideia da humanidade
Não vale um só químico,
Desses aí, que semeiam angústia;

Bem o sei...
Trocaria tudo isso
Por um pouco de morfina,
Um suave analgésico;

Quem não trocaria palavras
por um momento de paz?

A Guera de Tróia,

O Holocausto,

por um cobertor
quando se tem frio...

domingo, 5 de abril de 2009

Se o vosso coração está em silêncio,
Deixem-no estar em silêncio.
Cerrem ainda mais os ouvidos
ao apelo surdo da verdade.

Quando leio romances antigos

Quando leio romances antigos,
Sinto uma tristeza profunda.
Pois sei que nunca mais será
possível algo assim.
Os heróis românticos falar-me-iam
da igualdade de sexos;
As princesas em regimes conjugais;
Os arqi-inimigos já não
seriam niilistas safados,
mas produtos sociais.
Os enredos seriam completamente
planos e nunca teriam finais felizes.
Por alguma razão,
Ainda alimento a esperança
de ver esses tempos,
No pó das pedras,
No sussurar dos amantes,
No vermelho dos telhados.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Hoje é o dia em que nunca mais seremos,

Afastamo-nos,

Talvez um dia nem as memórias se saibam definir,

Ou quem sabe

o teu olhar ferido,

Aquele instante enternecido

Do nosso eterno regresso.


Mas como podia adivinhar,
Eu, de natureza fraca, inseguro,
Que aquele olhar obscuro
Era apenas o começo?

Era o bem e era o mal,
Era o suco vaginal,
O branco esplendor dos mármores,
A seiva que escorre das árvores…

Se soubesses que ainda hoje vi a turba passar;
Devias ver como esmagava tudo à sua passagem.
Por um momento pareceu que se dirigia a mim.

Dir-lhes-ia apenas,
Que tu és bela,
E tenho tanta pena de um dia morrer.

domingo, 8 de março de 2009

O poema mais longo

Já não posso disfarçar a evidência,
Que em farrapos as esperanças se fizeram,

Nem a parca luz da noite cobre a minha cabeça, já calva.

Tudo parece impossível,
Tudo sobrelotado,
Tudo cheio,
Tudo inventado.

Crises financeiras,
Deficits públicos,
Episódios repetidos,
Recuperação económica,
Reformas,
Política social,
Formação contínua,
Integração positiva,
Sanidade mental,
Obras públicas,
Pílulas sem efeitos secundários,
Circuitos inteligentes,
Orientação para resultados,
Neologismos,
Anti-depressivos,
Cálculo do impacto,
Reserva prévia,
Seriedade,
Especialização.

Tudo no seu lugar,
Pessoas trabalham,
Desanuvio de fim-de-semana,
Amores efémeros,
Jogos de sedução planeados,

Meninas de aspecto metodicamente desleixado – diga-se metodicamente desleixado,
Meninas de aspecto ostensivamente promíscuo e perfeitamente apalpáveis – diga-se, perfeitamente apalpáveis;

Sistemas de filtragem e funcionamento do sistema,
Bebedeiras de fim de noite,
Crises existenciais e cinema de culto,

Guerras virtuais e reais,
Pornografia infantil,
Crises de meia-idade,
Aquecimento global
Desaparecimento da espécie humana,
Multiculturalismo e multilinguísmo,
Ressurgimento das culturas locais.

Horas sonolentas passadas no café da esquina que conserva o pó comprovativo da sua antiguidade. A cadeira dos grande artistas continua aí.

Secretárias mal humoradas e empregadas de mesa que nos tratam pelo nome próprio,

Testes de QI e alquimia dos sentimentos,

Jovens aspirantes a escritores que escrevem a bord de la Seine tal como os seus predecessores,

Literatura que expressa sentimentos, sinceros ou não, mas sentimentos,
Detectives para os casos de infidelidade,
Curas milagrosas,
Cultura de evasão,
Vidas malogradas,
Defesa da cultura,
Subsídios estatais,
Morte assistida,
Soluções alternativas,
Compatibilidade entre casais,
Dinheiro virtual,
Ataques ao dogma,
Análise pós-moderna,
Maturidade do capitalismo,
Homens vestidos de mulher e respeito elas opções sexuais,

Oportunidades de carreira,
Doenças do amor,
Diminuição de riscos,

Doses de filosofia para curar males do quotidiano.

Mendigos na rua,
Traumas de Infância,

Melhoria das telecomunicações,
Viagens Low-Cost,

Meninas que lêem aproveitando o súbito calor de uma tarde primaveril e varões (meticulosamente) despercebidos ao seu olhar indiscreto.

Grande nomes esquecidos pelo tempo,
Fotoshop,

Comentários da actualidade pelos mais autorizados especialistas,


Menina que rodas em ares de dança,
trarão tuas voltas a minha lembrança?

Corpos desesperados encontram o seu último refúgio numa louca noite de amor, diga-se – amor.

Actrizes porno fingem orgasmos com uma sinceridade desconcertante,

Beleza oculta de uma mulher feia,

A menina que passava partiu corações,
Não opulência das suas carnes mas pela generosidade do seu andar,

Elogio das gentes simples,

Hiper-exposição do ridículo e adaptação da Igreja católica aos tempos modernos,

Desespero sem causa e choro como terapia,

Notícias falaciosas,
Controlo dos media,
Insegurança,

A menina que passava olhava para trás e denotava
Uma expressão indizível de mágoa,
O exército vitorioso chegou hoje à cidade. No entanto não havia nenhuma comissão de boas-vindas.

Foi então que o jovem soldado sentiu
toda a sua inutilidade no processo de vitória,

E que esta teria sido igualmente alcançada
Se a sua existência tivesse sido suprimida,

Justamente aí reparou que já não recordava as privações passadas,
Nem disfarçar as botas esburacadas,
Nem os dedos amarelados do cigarro.

A sua farda, outrora nova, mostrava sinais evidentes de desgaste,

Saiu para a beira-rio,
Fumou outro cigarro e cuspiu…