terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Retrato

Observo o teu perfil e o teu andar
Teu globo azul que cobre a retina
O teu corpo feito de água e albumina
Com massa adiposa a resguardar,

As veias que se perdem a irrigar
Qual mapa infinito de uma mina
Ruborescem tuas faces de menina
Reflexo sensorial ao meu olhar,

E a forma retraída neste instante,
Desenha tua boca em esplendor
Como se recusaras, qual farsante,

Que oferece logo tudo sem rancor.
Mas sabes, filha, cago no amor,
E em todos os despojos de amante.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Deriva

Visto o casaco puído do tempo,
Clochard autorizado,
Rugas não tão ansiadas
Cravam-me a testa,
Cicatrizes de combate.

As calças apertadas atolam-me
a natureza;
Os sapatos preparados
Para uma boa refeição.

Em vão tudo desfila diante dos meus olhos:
Máscaras de cores garridas,
Anões e bobos de corte,
Carpideiras contratadas,
Cuspidores de fogo
transportados em traineiras;

Tudo tão irreal
À realidade tão palpável
do meu estômago colado às costas.

Marujos mareados a mil marés
Convidam ao embarque a terra nova
O capitão está louco,
O mapa a estibordo,
A carga no mar flutua…

Chega-se a hora de jantar,
Não chega que tenhas bom estômago
mas também bons dentes,
Pois o pão da emente de hoje é duro;

E que tenhas coragem,
Pois também é bolorento,
E audácia,
Pois terás de o roubar,
E força,
Pois terás de correr com ele.

Já não se preocupam com o que não te dão,
Deves antes preocupar-te com o que ainda te podem tirar;

O capitão está louco,
O barco à deriva,
A carga a estibordo.

Visto-me de nudez vestido
Louco sedento,
Aterroriza-me o descanso.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Diapasão - II

Na negrura alva de um tição
Vi que tudo em tudo assenta em nada
Que o mais belo corpo assenta em água
Não existe esperança ou salvação;

Se o que vemos é real ou ficção
Em que credo ou altar sacrificar
Se ao Deus Maior ou ao Deus do Lar
Quando a vida nos aporta confusão;

E são tudo fluxos, fluxos incessantes
Aflorando em várias margens o eterno rio
Sem saber se é bom ou mau, quente ou frio
Apenas que vivemos, morremos, tal como antes.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Sonho

Um cortejo bizarro que passa
O passado entre sombras tenebroso
Um charco de sangue que alastra
A uma cova qualquer onde se afunda

As pedras que ocultam indiferentes
A imagem daqueles que contemplam
Os náufragos que adornam as correntes
Dos tempos que em verdade nunca mudam

Só força, de onde vem toda essa força
Que faz aguentar o peso insustentável
Da memória?